sexta-feira, 21 de novembro de 2008

O Grilo Falante

Acabei de ler, quase de um só fôlego, a notável e maravilhosa obra do genial escritor Jorge Amado, “Capitães da Areia”. Pouco a pouco, e lentamente de folha a folha, a minha vista e o meu cérebro, juntos, navegaram e perderam-se na vastidão das páginas desta grande obra literária, na busca e na perseguição de um mundo que não me era de todo desconhecido nem tão pouco ignorado. Aliás, este fenómeno já antes me havia sucedido, nomeadamente, a quando da leitura de outras obras, onde também nelas, as suas principais personagens, eram crianças com vidas, sonhos e sofrimentos dos homens.

Lembro-me, de noutras semelhantes leituras, de ter sido invadido por uma sensação e por uma idêntica vibração, nomeadamente, quando em tempos apaixonadamente li os “Esteiros” do grande e não menos talentoso romancista Soeiro Pereira Gomes. Talvez por nostalgia, saudades de um passado pobre e parco de carinhos, mas rico em aventuras e cheio de histórias de grandes e piedosos heroísmos, que foram bebidos até à embriaguez nos velhos almanaques da história de Portugal e nos sebentos catecismos da religião vigente.

Esta leitura mágica e enfeitiçada dos “Capitães da Areia”, teve o condão de despertar o meu espírito para um distante e adormecido passado. E nesse acordar, reconheci no holograma que me era projectado, as personagens do “Pedro Bala”, do “Gato”, do “Pirolito”, da “Dora” e do “Professor” como sendo as personagens do “Tó Zé”, do “Gata”, do “Fernando”, da “Belinha Maria Rapaz” e de mim próprio, uma vez que quase que me identifico com o “professor”. Pois tal como ele, ainda os dentes de leite não me tinham caído e eu já sabia como era fértil a minha sonhadora e romântica imaginação de criança. O dom para o desenho e para a pintura que por Deus me foi dado, tal como o dom da personagem com que me identifico, sempre me proporcionou uma imaginação sem fronteiras e sem qualquer limite. Este meu mágico dom, fez com que nunca me faltasse a inspiração, nem tão pouco o talento e o génio para contar histórias de enredo difícil e de encantar. É esse o divino dom, que me permite dar alma aos objectos, voz às árvores, cor à memória e até feitio aos pensamentos, os quais tanto encantaram os meus queridos fantasmas.

Tantos foram os quadros falados e pintados no vento e nas nocturnas brisas, que tanto foram apreciados e aplaudidos por esses queridos duendes do meu passado, que ainda hoje, estes me prendem e me acorrentam com as grilhetas tanto da memória, como as da saudade. Para homenagear essas queridas aparições, não hesito sempre que me seja permitido e possível, contar sempre mais uma história de pasmar e de enfeitiçar desses tempos de menino, onde imperava a fantasia, a liberdade e o riso fácil.

Mas, apesar deste dom que Deus me deu, ser gigante e ser enorme, que inveja eu não tenho daqueles talentosos desenhadores que vestem fatiotas aos animais e dão feitio aos seus pensamentos. Esses não à regionalização!! Esses são os verdadeiros mestres, os verdadeiros magos e os verdadeiros génios na arte de comunicar e satirizar o quotidiano. É preciso de facto ter tanto um espírito tremendamente observador e satírico, como também possuir uma capacidade crítica e autocrítica invulgar e acima da média, para ter a capacidade de vestir os animais e de os fazer viver como os seres humanos. É essa a imaginação superior que tanto gostava e ambicionava de possuir, mesmo no tempo em que era parte integrante de um alegre e solto bando de pardais, que de nosso quase nada tínhamos, e a final de contas hoje verifico, que tudo na verdade tínhamos, porque possuíamos a liberdade, a fantasia de sonhar e a gargalhada livre e farta.

Que arma eu hoje não teria para contribuir para a extinção dessas personagens na vida real, se tal como esses grande artistas, tivesse essas doses industriais de sentido de humor e de fina ironia, para interpretar e satirizar os poderosos deste mundo, criadores e geradores de personagens reais de futuros romances de homens que nunca foram crianças.

Tenho a profunda convicção, que se estes meus muito apreciados e venerados artistas não tivessem esse gigantesco talento, o Grilo falante seria um animal de grande porte, cheio de sentenças para dar e juízos de valor para fornecer. Só por grande ironia é que a voz da consciência aparece personificada na figura de um grilo tão pequeno e insignificante, que ainda por cima dorme apertado numa caixa de fósforos e que até é conservador e antiquado no seu trajar, uma vez que este usa como indumentária, um chapéu alto, uma casaca preta de modelo antigo, bengala e polainas brancas.

Ainda me recordo com grande nitidez, o tempo em que encarnava a personagem do “professor”, e que na minha consciência habitava um grilo semelhante, se não um pouco mais pequeno do que o Grilo da fábula do Pinóquio, pois quase tenho a certeza, que um dedal serviria para seu leito.

Recordo-me também ainda, que a liderança e a conquista destes pequenos corações ricos de sonhos e de aventuras, fora feito à custa de histórias que faziam o meu nariz crescer desmesuradamente. Sei que nessas histórias de pasmar, por vezes me excedia um pouco com um colorido e um picante mais forte do que o aconselhável, pois o grilo falante que me acompanhava no tempo em que eu trepava às árvores, não deixava de a meu lado insistentemente, pular e de gritar na minha mente, que aquilo era imaginação criativa e fértil a mais, e tal imaginação tinha limites. Mas a credulidade daqueles puros olhares, levavam-me muitas vezes a navegar no imaginário e até no esotérico. Por isso, nunca nos entendemos, havia um descompasso permanente nos seus passos e nas acções que eu realizava. Assim, quando contava uma história para os meus companheiros de aventuras, geralmente como um crónico e já habitual tique, afastava com a minha mão, esse importuno e maçador que não parava de gritar e de atormentar a minha pobre mente.

Ainda hoje, talvez como herança desse passado ainda nítido, penso, que para nossa defesa e protecção, quantas vezes não temos a necessidade de fingir que não ouvimos a voz da nossa consciência. E quantas vezes, não temos necessidade de a ignorar, apesar de todos os avisos e de todos os sinais de alerta que o nosso grilo falante nos faça?

Eu acredito, que existem mentiras boas. Porque acredito que nem tudo pode ser revelado e dito...Mentir toda gente mente. Quem diz que nunca mentiu é mentiroso. Mentiras pequeninas ou grandes, inocentes ou culpadas, boas ou carregadas de malícia, omissões ou ausências, são alguns dos numerosos membros da grande família das mentiras, que em determinados momentos da nossa vida, nos assaltam a consciência, nos estrangulam o coração e nos ferem a alma porque as vicissitudes da vida nos obrigam a utilizar esses meios que o nosso grilo falante tanto reprova.

As mentirinhas que foram responsáveis, nesse tempo de menino, por o meu nariz crescer, crescer, eram mentiras boas e piedosas, pois não faziam mal a ninguém, antes pelo contrário, deixava nos meus companheiros os seu olhos esbugalhados de românticos sonhos e de exemplos de acções que os tornavam mais determinados e até mais valentes do que nunca.

Agora, que acabei de ler este cofre depositário da sabedoria dos meninos que nada têm para além dos seus próprios sonhos, e que me fez recordar através das poeiras do tempo o meu já longínquo passado, volto a colocá-lo com um carinho muito especial de novo na estante, para num outro dia, voltar a acordar estes queridos fantasmas que adormecem nesta soberba e magnífica obra, para que dessa forma, possa vir a matar as saudades de uma infância que não ouso qualificar, ao mesmo tempo, que estes queridos duendes me dão a coragem e a determinação para contribuir, que outras crianças não venham a ser inspiradoras de personagens de outros romances, cujos heróis venham a ser as crianças que nunca tiveram infância.

A Solidariedade dos Gansos Selvagens

Numa manhã pachorrenta e solarenga, estava eu de costas deitado no verde e húmido tapete de relva, junto aos caniços e juncos que bordejavam uma represa farta de carpas, à espera que uma dessas tolas abocanhasse o isco que esperneava no meu anzol, quando o ruidoso grasnar de gansos selvagens me despertou da apatia e da sonolência, que aquele baixo e doentio sol primaveril me causava. Não muito alto, em contraste com um céu de um azul ciano profundo, brilhante e sem nuvens, pude ver um bando de brancos gansos selvagens que voavam numa formação em forma de um “V”.

O meu olhar inquisidor, intrigado e curioso, ficou desde logo preso àquela formação de emplumados e esguios viajantes de grandes distâncias, e lembro-me de me ter interrogado, qual seria a razão que os levava a escolher aquela peculiar e característica forma de voar? Esmiucei a minha atenção e assim pude deduzir, que à medida que cada uma daquelas aves batia as suas asas, ela criava uma base de sustentação para a ave seguinte, e assim sucessivamente de ave para ave. Ora, aquelas ruidosas e esguias aves ao escolherem voar em formação na forma de um “V”, possibilitavam a todo o bando voar pelo menos o dobro da distância, que qualquer uma delas poderia voar isoladamente.

Reparei ainda, que quando algum ganso saía daquela formação, ele sentia repentinamente a resistência do ar e por isso, rapidamente retornava à formação, para dela tirar a vantagem do poder de sustentação do ganso que voava imediatamente à sua frente.

Em determinado momento, o ganso líder exausto e cansado, deixou-se ficar para trás, até atingir a traseira de uma das extremidade da formação, enquanto que um outro ganso assumiu de imediato o vértice da mesma.

Pude ainda reparar que naquele bando de gansos selvagens, as aves da frente levavam os bicos de um forte laranja completamente fechados, enquanto que os gansos de trás os levavam bem abertos, para grasnarem de forma ruidosa, para que desse modo, os gansos da frente se sentissem mais motivados a manterem o ritmo, a força e a velocidade do voo.

O exemplo da forma de voar deste bando de gansos selvagens, bem poderia ser um exemplo a seguir pela sociedade humana, pois tal como eles, todos nós necessitamos de ser apoiados, estimulados e encorajados. E tal como eles também, se partilharmos com outra pessoa a direcção comum a um determinado objectivo, com o espírito de uma verdadeira equipa, temos fortes probabilidades de chegar ao nosso destino, sem o dispêndio de muitas energias, sem grande esforço e muito mais depressa, porque nos apoiamos na confiança e na força anímica que é gerada uns nos outros.

Quando “viajamos” na mesma direcção com outra pessoa que compartilha os mesmos objectivos e os mesmos ideais e interesses que os nossos, transmitimos uma à outra a necessária força, o indispensável poder e a absoluta segurança. E tal como o líder ganso selvagem, deveremos revezar os companheiros que num trabalho árduo, ficaram exaustos e cansados, para que desse modo, estes possam retemperar as sua forças e juntos alcançarmos o objectivo estrategicamente planeado. Sigamos por isso o bom exemplo da forma de voar dos gansos selvagens.

As Testemunhas

O manto da noite de um azul prussiano do mais profundo dentro da sua gama, lentamente cobriu a desértica e agreste paisagem. Rajadas cortantes do vento norte fustigavam com impiedade os três vultos, cujas silhuetas em visível esforço, se desenhavam na linha do horizonte. um deles dobrado sobre si, no dorso do que parecia ser um jumento, e o outro, com aparente dificuldade caminhava na dianteira deste, a fim de procurar e de escolher o melhor caminho, para atravessarem aquela deserta e inóspita paisagem.

Depois de muito caminharem pelas vastidões desertas de almas, paradeiro dos medos e das assombrações, numa quase total invisibilidade e num grande negrume, avistaram muito ao longe, em forma de concha de luz, as domésticas e bruxuleantes luzes de azeite de uma povoação. Com a visão deste oásis de esperança e de vida, fizeram de imediato rumo para este farol, com uma renovada decisão e um novo alento. Já em Belém, nome que era dado àquela povoação salpicada de pirilampos mágicos, uma porta, um pedido, uma recusa. Outra porta, outra solicitação e outra rejeição. E de recusa em recusa, de rejeição em rejeição, estes cansados e cambaleantes vultos caminharam pela noite adentro, batendo indiscriminadamente em todas as portas por onde passavam, e todas as portas teimosamente se lhes fechavam, até que finalmente tiveram acolhimento num lugar onde não havia portas. Num lugar em que o seu único hospedeiro não recusou dividir com eles a sua morada, e até mesmo os seus parcos haveres. Uma vaca de pêlo com a cor do fogo e longos chifres do mais puro branco, não hesitou em lhes oferecer o seu estábulo, a sua manjedoira, o seu feno e até mesmo o calor do seu próprio corpo.

Pela acção acolhedora e hospitaleira deste descendente de ápis, nessa fria e gélida noite desse distante Dezembro, que viria a dividir para sempre os tempos, este, juntamente com o jumento cujo o pêlo lembrava um adiantado crepúsculo, de orelhas compridas, auréolas brancas nos seus dóceis olhos e de crina curta, seriam as únicas testemunhas do maior acontecimento e mistério da história da humanidade. Pois eles, naquele obscuro e frio presépio, que viria ano após ano a ser lembrado em nossos próprios presépios, tiveram a imensurável honra e o grande privilégio de presenciar a Maria Santíssima a dar à luz a Luz.

De geração em geração, todos os presépios que construímos desde o tempo em que vestia-mos calções e trepava-mos às árvores, são em memória deste místico e grande acontecimento. E todos eles, mesmo que diferentes no seu cenário, têm em comum a presença das referidas testemunhas, as quais representam tanto no nosso intimo, como no nosso imaginário, uma: a força, a terra e a luz, e a outra: a noite, o saber oculto, a preserverância e o mistério. Pela sua pose de descanso e de descontracção, o quadro que herdamos do primeiro Natal, leva-nos a interpretar e a concluir, que foram estas dóceis criaturas de Deus, que com o calor dos seus corpos protegeram e salvaram o Jesus Menino dos gélidos e cutilantes frios, que fustigavam e trespassavam as frinchas das paredes feitas de madeiros mal talhados, daquele pobre e húmido estábulo de Belém.

No humilde presépio que deu origem a todos os outros presépios, a vaca e o jumento tomaram o lugar que estava destinado aos homens para a recepção do Deus feito homem. Por isso, eles são dignos de estarem tanto nos nossos presépios como a estarem nas nossas mentes. Tanto mais, que a eles poderemos também lhes atribuir o simbolismo de representarem tanto o povo eleito, como também o de representarem o povo pagão, ou seja, eles são o símbolo da humanidade universal. O jumento, que fora o eleito para carregar e transportar a Virgem Santíssima em estado de graça, numa penosa e difícil caminhada pelas vastidões do desconhecido, é o símbolo do povo cristão. A vaca, por sua vez, que lembra em todas as vertentes o boi ápis, o qual foi por muito tempo o símbolo da devoção da humanidade aos valores terrenos, é o símbolo do povo não cristão. Ao representarmos juntos estes dois símbolos nos nossos presépios, estamos a representar nada mais, nada menos, do que a humanidade universal sem diferenças de credos, sem diferenças de cor, sem diferenças de raça.

Desde esse longínquo dia do nascimento de Jesus e durante toda a Sua vida de peregrinação e pregação, Este não fez mais senão repetir o gesto do bom São José. Bater com insistência e perseverância à porta das nossas almas, solicitando-lhes guarida e hospitalidade, por forma a que com a sua Luz a elas se funda em uma eternidade de valores e de princípios, daí, Jesus nos ter transmitido “Eis que estou às portas e bato; se alguém ouvir minha voz e me abrir a porta, eu entrarei e cearei com ele e ele comigo”.

O dia do nascimento de Jesus aqui retractado, foi como que o auspicio e o presságio de toda a sua vida, uma vez que ao longo da Sua curta existência, houve uma sucessão de recusas e de rejeições. Pelas narrações e registos bíblicos que nos chegaram até aos nossos dias, temos o conhecimento que houve a recusa dos escribas, dos fariseus, do povo judeu, dos gentios e até mesmo, no momento culminante e auge da Sua vida, teve a negação e a recusa dos Seus próprios discípulos e dos Seus próprios apóstolos.

De recusa em recusa, de rejeição em rejeição, o Menino Jesus encontrara leito apenas entre os fenos e as palhas duma manjedoira de um pobre estábulo de Belém. De negação em negação, de recusa em recusa, Jesus apenas encontrou repouso no madeiro que Lhe serviu de Cruz no Calvário.

Saibamos então abrir as portas dos nossos corações, quando Jesus junto a estas lhes bate, e saibamos também O receber e O acolher, como O souberam receber e acolher a vaca e o jumento, naquela distante, gélida e fria noite de Dezembro.

Um Sonho no Centro de um Pesadelo

Naquela manhã de um frio dia de Dezembro, em que os raios de sol timidamente lambiam e aqueciam o meu rosto, e o gélido vento libertinamente desgrenhava e desalinhava o meu cabelo em múltiplas madeixas, a traição silenciosamente rondava de perto o meu coração. De súbito, na boca do meu estômago, uma lenta e crescente dor aguda repticianamente marcava a sua nefasta presença, confundindo a minha ingénua mente com a ingestão de alimentos já fora de prazo e por isso, confundiu-a e enganou-a com uma dor de passagem e sem qualquer importância. Mas, a sua agressividade e violência desmentia a inocência com que esta se tinha aproximado e invadido todo o meu ser. Tal era a sua ferocidade e a sua crueldade, que mesmo com os braços tenazmente cruzados sobre o meu peito num forte abraço e dobrado sobre este, esta teimava em não abrandar, antes pelo contrário, crescia desmesuradamente e agigantava-se num fogo infernal e insustentável, como que a cumprir uma terrível e brutal sentença de um maléfico e cruel deus. Os meus olhos desesperados e aquosos eram como os de uma criança, que perdida no desconhecido, varriam incessantemente o horizonte na busca do socorro, que demorava e que tardava. Mas, aquele polvo de tentáculos terríveis envolveu todo o meu peito, como seu senhor e seu dono, numa gigantesca fornalha de dor e de sofrimento, que mais parecia permanentes torcicolos que nos deixam à beira da loucura e da demência, por ausência de qualquer outro raciocínio lógico, que não seja o desaparecimento daquela terrível e insuportável dor.

Amarrado e afivelado à maca da ambulância, sem mais nenhum cuidado que não este, a esperança de sobrevivência a este feroz e traiçoeiro ataque renascia. Naquele leito de dor e de esperança, senti que a vida se me desvaía, pouco a pouco, e por isso, senti que o meu fim inexoravelmente estava próximo, e tanto mais, que os sinais desse fim eram por demais evidentes. Primeiro, pelo completo desligar da audição, a qual, no início me começou por parecer, que tinha mergulhado os ouvidos nas profundezas oceânicas e por esse facto, a distorção dos sons se justificava. Não tardou muito, que esses distorcidos e longínquos sons, que mais pareciam estarem a ser difundidos através do vácuo, por completo se extinguissem num total e permanente silêncio. Segundo sinal, as forças, que também elas se me despediram, deixando com a sua partida, o meu corpo completamente inerte, totalmente abandonado e sem qualquer movimento ou reacção que lhe dessem sinal de vida. Por último, a visão das cores da vida que nos é tão amada e querida, começou por desfocar toda a imagem que me envolvia, transformando-a numa esbranquiçada névoa disforme, que lentamente se escureceu até à total invasão da profunda escuridão, paradeiro dos medos e dos mistérios. Todos os órgãos, um a um, depois de se despedirem de mim, se desligaram e pararam.

Só a minha mente estava no seu estado mais puro e mais perfeito, no entanto, ela estava ocupadíssima a recordar tudo quanto de belo deixava neste mundo, como que a elaborar um balanço das boas e das más acções que foram praticadas nesta vida. O resultado, pelo sulco e o rasto deixado por alguma lágrimas que brotaram dos meus olhos baços e vítreos já sem vida, era de sinal positivo e o único sinal de vida que o meu inerte corpo emanava. Embora estivesse mergulhado na mais profunda das escuridões e amarrado àquele leito de sofrimento e de dor, que parecia brevemente vir a ser um leito de infortúnio e de morte, eu ainda tinha alguns restos de esperança na sobrevivência, pois sabia, que aquela viatura branca com a cruz vermelha pintada nas suas portas, estava nesse momento a percorrer de forma tresloucada e louca as ruas de Lisboa, com os seus estridentes gritos de agonia, de aflição e de desespero, provenientes das suas sirenes, na tentativa máxima e última de contrariar o presságio que parecia mais que certo. Em meu redor habitava o total silêncio, e a mais profunda das escuridões era a minha companheira. Ao contrário do que se poderia esperar numa destas desesperadas e dramáticas situações, eu não estava aterrorizado e a ausência do medo em todo o meu ser era total e por completo. Lembro-me, que apenas me veio à mente, que iria por fim enfrentar o desconhecido e desvendar o mistério de todos os tempos. Alguma coisa no meu interior me dizia, que mesmo estando imerso na mais profunda das escuridões e mergulhado no maior dos silêncios, eu estava em segurança, pois eu senti que apesar de ter sido projectado para uma outra desconhecida dimensão, nesse lugar, eu estava entre amigos. E na verdade, todo o meu raciocínio estava certo e correcto. Pois eu conseguia ouvir agora em meu redor vozes murmuradas e sons abafados, sinais evidentes de que não estava só.

Uma mão firme segurou e agarrou a minha mão, guiou os meus passos no desconhecido, ao mesmo tempo que numa voz serena, segura e confiante, respondia às muitas perguntas que me faziam, e tanto pela rectidão, como pela profundidade e a veracidade dessas respostas, eu estava sinceramente imbuído e tomado pela importância e pela majestade do momento.

Através do contacto e da pressão dessa mão amiga, que me segurava e que me guiava os passos no desconhecido, eu senti sempre a presença da segurança e da tranquilidade, mesmo no percurso de algumas desconhecidas e acidentadas viagens que fiz. Pois, eu nessas desconhecidas viagens, senti sempre que estava a ser bem conduzido e guiado, e por isso as enfrentei com a determinação, a tenacidade e a coragem indispensável para ultrapassar e vencer os desconhecidos obstáculos e perigos, que em cada momento me esperavam. Assim, em segurança, caminhei por estranhos e bizarros lugares, através tanto de sinuosos e tortuosos caminhos, como por suaves declives e largas avenidas. Sempre que regressei de cada uma dessas misteriosas e difíceis viagens, fui sempre amparado e confortado por desconhecidos, que ao meu ouvido sussurraram palavras murmuradas que me transmitiam conforto e estimulo, ao mesmo tempo, que me transmitiam estar bem acompanhado e de estar sempre em segurança. Mas, o mais estranho e o mais difícil de compreender, é que mesmo que nada me fosse sussurrado, mesmo que nada me fosse dito, eu tinha a sensação de estar amparado, e de estar a ser assistido com a mestria e a segurança de quem sabia o que estava a fazer.

É certo, que eu desejava mais do que tudo, obter a necessária luz que findasse aquela total escuridão, que me envolvia nas permanentes trevas, mas não por desespero ou por medo, mas sim para poder ver aquelas pessoas que sentia serem minhas amigas. Eu desejava e queria a luz, porque algo no meu interior me dizia, que ao recebe-la, esta mudaria profundamente a minha vida, ela mudaria por completo os meus pensamentos e toda a minha forma de estar e ser, pois eu fazia parte de uma outra dimensão e quiçá no princípio de uma outra vida através da reencarnação.

E o meu desejo foi ouvido e foi correctamente interpretado e talvez por isso, este foi de imediato cumprido. A luz com toda a sua magnificência e imponência me foi restituída. E nesse estado de graça, repentinamente me vi num imenso templo, que representava todo o nosso universo. As suas dimensões não tinham limite nem fim, uma vez que estas iam do Norte ao Sul, do Ocidente ao Oriente, do Centro da Terra ao Céu infinito. Dentro deste Templo, muitas pessoas me encaravam, com os seus semblantes tranquilos e suaves, que embora me fossem semblantes desconhecidos, me eram estranhamente familiares, como se de antigos familiares e de amigos se tratassem.

Não eram muitos os rostos presentes naquela celestial recepção, mas estranhamente também me pareciam ser milhões e por isso representavam todo o universo. Estes serenos vultos, também estranhamente me pareciam mais do que vultos de pessoas comuns, mais do que vultos de pessoas amigas... eles me pareciam vultos de irmãos!

Um destes queridos vultos irmãos, envolto e engalanado por uma brilhante aura, que me provava estar inspirado por algo de maior e de mais Divino, me explicou com a doçura e a candura dos homens bons, onde estava e quais foram as razões que me levavam àquele lugar sagrado. Num gesto que abrangeu todo aquele estranho templo, ele me explicou com a paciência e o saber dos mestres, que as dimensões sem fim daquele templo, representavam todo o infinito universo. Eu olhei surpreso e curioso em redor daquele lugar sagrado a fim de confirmar tais dimensões, e de imediato fui atraído por uma forte e poderosa luz que vinha do Oriente, local onde se encontrava o trono do irmão dotado da auréola mágica, o qual, compreendendo o meu fascínio e a minha curiosidade para tudo o que me rodeava, me esclareceu dizendo, que aquela sublime e magnífica luminosidade provinha do Sol, o nosso astro rei, e que aquela luz simbolizava o conhecimento humano e a Doutrina do Amor, que nos havia sido presenteada nos começos dos tempos por Deus.

O meu encanto e entusiasmo era tamanho, que era visível a minha ansiedade e a minha avidez por conhecer com a profundidade dos cientistas, aquele maravilhoso e encantador lugar sagrado. Com um sorriso condescendente, esse irmão que tinha assento no Oriente e auréola de luz que lhe conferia o poder da divindade, me explicou com a sabedoria e a paciência de quem muito sabe, tudo o que de estranho me cercava e me rodeava.

Ainda me contou este mestre do conhecimento e do saber, uma estranha história a respeito do Tabernáculo erigido no deserto por Moisés, o qual foi a fonte de inspiração do local onde me encontrava. Contou-me ainda este irmão dotado de luz mágica, que o sábio Salomão, querendo glorificar o Pai Eterno, criador dos mundos, erigiu num certo dia um belo e magnífico templo, apoiado sobre três grandes pilares, denominados de Sabedoria, de Força e de Beleza. Nesse templo celestial, vi claramente esses três pilares, que estavam representados por irmãos iguais a mim, mas dotados de uma unção especial, de uma luz diferente e com uma auréola que os diferenciava dos demais, conferindo-lhes por isso maior altivez, maior dignidade e maior majestade. Esses queridos irmãos, que estavam sentados em tronos que representavam as colunas Jônica, Dórica e Coríntia, as quais alegoricamente representavam os pilares do Templo de Salomão, eram também eles neste templo de maravilha os seus pilares mestre.

Sobre as nossas cabeças, pude ainda apreciar uma abóbada de um profundo azul celeste, pontilhada por faiscantes e encandescentes micro pontos de luz, que me dava a impressão e a sensação de não ser tangível, nem tão pouco de ser composta por matéria. Olhei-a com a minúcia de quem a estuda e de quem a analisa, e logo me deu a impressão e a sensação de que estava numa alta montanha, contemplando do seu cimo, o infinito azul céu estrelado. Percebi e entendi de imediato, que a minha missão naquele lugar, era atingir a plenitude deste maravilhoso céu infinito, afim de chegar cada vez mais perto do nosso Criador. Por momentos, hesitei um pouco na formulação da pergunta, afinal de contas, é sempre muito difícil interpretarmos aquilo que vemos pela primeira vez, e por isso, com alguma timidez perguntei ao irmão que era também o meu guia, o que deveria eu fazer para alcançar aquelas estrelas tão brilhantes e tão distantes?

Ainda não tinha eu terminado a pergunta e sob um clarão de luz intensa, surgiu do nada uma luminosa escada, com milhares e milhares de degraus, e em cada um deles, tantos irmãos amigos quanto estes, convidando-me com gestos prazenteiros e de gentileza a iniciar a escalada daquela luminosa escada sem fim. Com a pressa dos principiantes, tentei galgar rapidamente os degraus. Mas, fui delicadamente barrado pelo primeiro irmão amigo, que me informou que naquela escada eu a deveria subir, degrau a degrau, até atingir o seu cume, que era o local onde estava o Pai eterno, mas que para isso, eu precisaria de muito tempo, de muita dedicação e de muita aplicação nas sucessivas reencarnações que me esperavam. No entanto, o primeiro degrau, conquistei-o ali mesmo tal era a minha pressa e a minha ansiedade.

A tranquilidade que me envolvia naquele templo era absoluta e total. Embora a escada continuasse ali, fulgurante e luminosa, com um irmão amigo em cada um dos seus degraus, o profundo silêncio era soberano e ali reinava em plenitude. Aquela escada era de dimensões desmesuradas e descomunais, uma vez que descia do infinito celeste e terminava num pavimento constituído por losangos brancos e pretos intercalados entre si. Olhados de cima do primeiro degrau daquela luminosa escada, parecia-me um tabuleiro de xadrez, onde em remotos tempos tanto me perdi em estratégias de combate e de vitória. Tive a sensação de que estes losangos, mesmo que diferentes, opostos e antagónicos nas suas cores, cada um deles se completava e vice versa. E tal como aqueles losangos, todos nós temos as nossas diferenças, no entanto estamos unidos em comunhão e em fraternidade, uma vez, que o nosso Criador foi um só. Senti uma grande felicidade quando o meu guia, parecendo adivinhar os meus pensamentos, concordou comigo, e me confidenciou que tal pavimento representava na verdade, a harmonia e a coesão de todos os que ali se encontravam.

Sempre com este irmão como uma sombra a meu lado, conheci muitos detalhes deste majestoso templo. Com a sua ajuda cheguei mesmo a descodificar misteriosos e enigmáticos símbolos, que representavam tanto a moral, como a justiça e a rectidão de que todo o ser humano se deveria pautar na sua curta e breve existência por este mundo. Eu estava de facto profundamente impressionado e glorificado pelo ensinamento e a riqueza ímpar que recebia daquele meu guia irmão amigo.

Depois destes sublimes ensinamentos, fui conduzido a um dos cantos daquele mágico templo, e fui apresentado a uma pedra escura, bruta e disforme. O meu guia perguntou-me o que eu via nela. À primeira vista, a resposta que me parecia mais óbvia e lógica, uma vez que simplesmente nela via uma pedra bruta e nada mais do que isso, seria responder que era uma pedra bruta e disforme. Mas dando ouvidos às sensações e vibrações que do meu coração emanavam, respondi que me via retractado naquela pedra, uma vez que ela estava na forma que o Criador me havia concebido. Uma pedra bruta e disforme, que em mãos hábeis me transformaria numa pedra bem talhada e acabada, que viria a servir como material de construção bom e importante, para a edificação de um mundo melhor na reencarnação que já se me adivinhava. Compreendi sem a necessidade de uma explicação adicional, que a mão mais hábil para polir e talhar aquela disforme pedra, era justamente a minha. Pois em mim estavam encerradas e reunidas todas as necessárias ferramentas, para melhor executar aquela tarefa, que havia sido determinada pelo Criador.

Aquele irmão possuidor da sabedoria divina, explicou-me ainda com a calma e a paz dos anjos, que a energia proveniente da luz do Oriente, tanto nos outorgava saúde e bem-estar, como nos convertia em livros abertos, onde em uns estaria escrito o passado, noutros estaria escrito o presente, e em outros ainda estaria escrito o futuro. Deu-me ainda a perceber esta sombra amiga, que quando conseguíssemos encontrar e ler esses livros mágicos do conhecimento. Então, estaríamos imbuídos da chama da vida eterna, e por esse facto, seríamos deuses que iluminariam o caminho de outros homens.

Disse-me ainda esse irmão guia amigo, que no homem o seu sémen o aproximava de Deus, em virtude do seu poder criador lhe ser a Ele comparável. Perante a minha estupefacção e até mesmo algum pudor, este irmão amigo ainda me confidenciou, que naquele fluído da germinação e da criação do homem, para além de ser um tónico purificador dos seus músculos e do seu sangue, habitavam nele os anjos da luz e os arcanjos das trevas. Disse-me: que os anjos como criaturas de luz que eram, tanto representavam a energia luminosa e criadora de Deus, como eram também possuidores da sublime sabedoria Divina. Ao passo, que os arcanjos que nesse fluido também habitam, representam a tenebrosa energia que é a mais nociva sabedoria que habita na mente humana, e que somente pela iniciação se poderia romper as trevas da ignorância e a barbárie que habita no espírito de cada homem.

Naquele templo etéreo, eu sentia que estava realmente entre irmãos, e que aqueles momentos eram para mim mágicos e sublimes de conhecimento e de saber. Olhei o meu passado com saudade, não nego, e logo compreendi, que tinha deixado a minha obra inacabada, uma vez que a construção do meu templo interior ainda apenas estava nos seus alicerces e por isso, àqueles meus irmãos celestiais humildemente confessei a minha falha, e com modéstia lhes implorei a permissão do meu regresso ao mundo dos vivos, a fim de completar a obra que havia deixado incompleta e inacabada. O sorriso do irmão mestre e meu guia, foi o evidente sinal da sua concordância e da aceitação dessa benesse e com a sua mão ele cobriu os meus olhos, que voltaram a mergulhar na mais intensa e profunda das escuridões.

Do profundo negrume, surgiu uma branca e luminosa névoa, que pouco a pouco fez os vultos em meu redor tomarem cor, nitidez e forma, ao mesmo tempo que sentia umas ligeiras cócegas no meu peito ainda inerte e sem vida. De súbito, uma potente luz jorrou e fulminou os meus olhos ao mesmo tempo que dava forma clara aos rostos transpirados e suados, com gorros e máscaras verdes, que debruçados sobre mim freneticamente me aplicavam desesperadamente e cadenciadamente murros e choque eléctricos. Uma voz, muito parecida com a do meu Divino irmão, disse-me com a mesma doçura, com a mesma calma e com a mesma segurança, que eu havia tido um enfarte seguido de paragem cardíaca, mas que agora tudo estava bem, que fechasse os olhos e descansasse com tranquilidade e sossego, pois eles velariam por mim. Eu, completamente esgotado e exausto das sucessivas viagens que havia efectuado, prontamente lhe obedeci e fechei os olhos. Quando despertei nos cuidados intensivos de um grande hospital de Lisboa, revivi os ensinamentos que me foram dados, naquilo que agora me parecia ter sido um agradável sonho. Hoje, estou convicto da graça que me foi atribuída a fim de completar a minha obra que continua ainda inacabada, embora esteja sempre pronto para voltar a esse templo sagrado, a fim de prestar contas tanto sobre o meu templo interno, como a prestar contas sobre o meu templo externo, a esse meu querido irmão amigo, que tem assento no oriente desse templo mágico e que me espera.

O Relicário

Numa certa manhã, depois de uma noite de um sono agitado e acordado, a minha consciência repticianamente me confidenciou, que o meu espírito devasso e vagabundo, tinha nessa noite sorrateiramente se libertado do meu corpo, para vaguear por ternas e saudosas recordações e que por fim vencido por estas, tinha acabado por visitar um acolhedor apartamento amigo. Como dei alguma atenção a esta alcoviteira notícia, vesperinamente e com um forte sibilar, esta continuou a me relatar com esmero e detalhe, as nocturnas aventuras do meu libertino e vadio espírito. Assim, por esta insânia e demente confidência, fiquei a saber que nesse encantador apartamento amigo, o meu espírito tal como uma vulgar traça, tinha sido atraído por uma mortiça e bruxuleante luz, que tremidamente rodopiava numa pequena lamparina, projectando sombras que esvoaçavam na parede em movimentos mágicos e dançarinos.

Sei por esta confidente, que ele foi atraído por essa mágica e feiticeira luz de forma dominante e absoluta, como também sei por esta voz da minha consciência, que este, tinha ficado muito curioso e por isso se aproximou para observar aquilo que lhe parecia ser um santuário, e com muito respeito e curiosidade, observou com atenção e pormenor a disposição na parede, das pesadas molduras douradas com diplomas e comendas, como também observou com o mesmo cuidado as molduras com algumas medalhas contendo inscrições de homenagens e agradecimentos, cujos textos com detalhe não se apercebeu, devido à escassez da iluminação daquele espaço de respeito e austeridade.

Por baixo dessa galeria de honrarias e de mercês honoríficas, estava uma pequena credência de forma triangular, onde poisava a hipnótica e narcotizante lamparina, que por sua vez ao seu lado esquerdo descansava um Malhete de ébano, e ao seu lado direito, uma trolha em metal cor de prata reluzente. Na sua frente, com um polimento luzidio e em relevo filigranado, conferindo-lhe por isso nobreza e majestade, estava um Compasso sobreposto a um Esquadro. Por detrás desta lâmpada de azeite, encontrava-se um desbotado avental de Mestre Instalado, moldurado com requinte e bom gosto.

Disse-me ao meu ouvido a voz víborina, que o meu espírito tinha ficado junto daquele relicário algum tempo, totalmente imóvel e profundamente absorto no enlevo da contemplação e que depois da respeitosa e contrita meditação, o meu espírito tinha ficado preso a uma saudade sem limites e por isso, procurou comunicar com o espírito da inquilina daquele apartamento amigo. O espírito desta, reconhecendo no visitante um amigo, soltou as amarras do seu abandono e do seu isolamento e segredou-lhe, que aquele altar de recordação era a sua singela homenagem a quem muito amou e de quem muito foi amada, uma vez que aqueles objectos tinham pertencido ao seu falecido marido, os quais tinham sido por ele em vida muito queridos e estimados.

A viúva desse meu incógnito amigo, tem um espírito muito comunicativo e farto de palavras, por isso, com lentas pinceladas recordou-lhe o perfil do homem, do esposo, do pai e do amigo que este em vida fora, deixando por isso com a sua partida um vazio impreenchível em seu saudoso coração. Com a recordação da personalidade do homem que o meu desfocado amigo fora em vida o meu espírito, sabendo que este fora uma pessoa admirável. Um ser humano extraordinário; um profissional exemplar, enfim, um santo homem, mergulhou num mar de imensa saudade. Apesar de absorvido em nostálgicas e saudosas lembranças, este meu sensível e impressionável espirito ainda conseguiu ouvir do inconsolado espírito da companheira desse meu brumoso amigo dizer em tom amoroso mas com firmeza, que Deus o tinha levado para junto de Si, que Deus tinha levado o seu santo, que a sua luz se tinha fundido na luz de Deus, que se tinha fundido na luz do Eterno Oriente e que por essa razão, aquela lâmpada votiva permaneceria acesa todo o tempo, dia e noite, para que iluminando as coisas que ele tanto tinha prezado em vida, fosse para este um farol e um guia para o seu espírito, até ao dia, a que a ele se venha novamente a unir, se o Altíssimo lhe vier a conceder essa graça. Até ao seu esperançoso dia de redenção, este solitário espírito confidenciou-lhe que nos momentos de desconsolo da vida, aquele altar seria o local privilegiado para meditar, para orar e para sentir a presença do seu amado, do seu santo.

Depois de uma pequena pausa reflexiva, este espírito abandonado e esquecido pelo tempo e pelos amigos de outrora, confidenciou ao meu, como se este nunca o tivesse sabido, quase em sussurro, entre o altivo e o circunspecto, que o seu marido tinha sido Maçom. Profundo silêncio meditativo daí adveio, como se naquele instante tivesse sido desvendado um profundo mistério, um segredo impenetrável se tivesse revelado. Aquele espírito cheio de saudade debicando delicadamente e suavemente as palavras, não se cansava de repetir com a voz murmurada e enternecida, mas segura e contrita, como a reviver um passado de ternura e de bem amada, que o seu marido fora um Maçom. Só o silêncio do meu espírito foi capaz de traduzir o diálogo e os fluidos de sentimentos e emoções que entre eles se estabeleceu.

Contou-me ainda a voz intriguista da minha consciência, que o meu espírito na despedida ainda se voltou mais do que uma vez, e por último, com um leve aceno de mão, despediu-se daqueles dois santuários. Um vivo, na sua frente, a iluminar a noite com a luz do seu espectro e com a aura da sua santidade. O outro, revivido e perpetuado no simbolismo daquelas relíquias de um passado e de uma vida exemplar, iluminadas a um canto daquele apartamento amigo. No meu espírito, por algum tempo ainda, matraqueou o eco das ultimas palavras daquele santo espectro amigo. Fora um maçom! Não! É um maçom noutra dimensão da vida! Pois a Maçonaria é a sublime luz que alumia os caminhos do eterno existir. Ela ensina o caminho para o eterno, ela ensina o caminho para a luz do Eterno Oriente.

Já a manhã há muito que não era uma criança, quando a reviver novamente a fantástica história que o meu espírito nessa noite fora protagonista, fiquei muito confuso com o relato da minha mexeriqueira consciência e por isso a indaguei com teimosa persistência da veracidade daquela soturna e lúgubre história. Pois agora estava consciente que aquele revivido quadro não se poderia ter pintado com as cores do verbo no tempo do passado, como também não se poderá pintar com as cores do verbo no tempo do presente, então este só poderá vir a ser pintado com as cores do verbo no tempo do futuro. Com as cores do que ainda não aconteceu. Com as cores do que acontecerá apenas um pouco mais tarde. Então... a cena aqui retractada é apenas uma premeditação, ou quiçá o fruto da admiração e do reconhecimento que nutro pelo nobre carácter de muitos dos irmãos presentes nesta Loja, e para eles desejo, que a sabedoria de Salomão continua a os inspirar, que a Força de Hiram, Rei de Tiro, os mantenha e que a beleza do Mestre Hiram Abi adorne os seus pensamentos, as suas palavras, os seus gestos e atitudes, por forma a que continuem na senda da sua perfeição e do amor ao próximo. Que Deus os ajude nessa nobre e santa missão!

O Mocho, a Coruja e o Rouxinol

Certo dia, no interior de um já não muito novo campanário esguio e de cúpula piramidal, um velho e sábio mocho foi despertado da sua letargia, pelo ácido diálogo que se estava a desenrolar em forma de esgrima, entre uma coruja inquilina e sua vizinha daquele lugar já de algumas invernias, e um rouxinol ainda há pouco tempo forasteiro daquelas paragens.

Dizia o rouxinol naquele momento para a coruja, em desenvoltos e seguros trinados de grande sonoridade:

«eu represento a beleza, a graça, o sol, e a vida, enquanto tu feia coruja, simbolizas a misteriosa noite, o teu nocturno piar simboliza a morte, e todos os homens temem o desenho da tua silhueta numa noite de lua cheia, porque representas o mal e só por isso, tu és o símbolo dos seus mais tenebrosos pesadelos. O homem não gosta de ti! Coruja. Ele só se sente feliz e satisfeito quando a tua silhueta não apareça na sua retina. Ele só se sente feliz quando o teu piar se ausenta dos seus ouvidos. Ele só se sente satisfeito quando a tua imagem se afasta para sempre da sua mente.»

«Enganas-te palhaço pintado, ele sabe que eu vejo no escuro, por isso, para ele eu simbolizo a filosofia, que permite ver as questões mais profundas e obscuras. E tu sabes paleta de cores salteadas, que onde o homem comum nada percebe e nada entende, o filósofo tudo vê e tudo compreende! Eu represento por isso o saber filosófico, a teoria pura, a ciência abstracta e, neste sentido para o homem, eu simbolizo o bem. Ele não me teme, ele aprecia deveras o meu grande saber e a forma sagaz de o descortinar e descodificar.»

«Deixa-me rir velha carcaça com penas... tu o símbolo da filosofia! Se encaras desse modo a questão, então eu sou para o homem o símbolo da poesia. Até o meu próprio nome mais parece haver nele um trinado sonoro de contagiante alegria. Ele é um raio de sol cantado que hipnotiza a sensibilidade do homem. Eu sou de certo o seu preferido, para habitar este lugar encantado.»

«Mas eu para ele sou a luz intelectual. Não há escuridão para os meus argutos olhos. Mocho! Vejo que já estás desperto pelo falsete trinado deste arco íris voador, diz-lhe! Sendo tu o símbolo do conhecimento, quem escolheria o homem para viver neste santuário? a mim! que represento a sabedoria, ou este peralta pintalgado que representa a estéril beleza!»

«Bem, eu gostaria não me envolver na vossa contenda, mas já que solicitas a minha opinião, e se vós a considerais muito importante para acabar com o vosso desentendimento, então escutem com muita atenção aquilo que vos tenho para dizer: a sabedoria é tão desejável como a beleza é amável. A filosofia ilumina. A poesia encanta. Preferir o saber, excluindo a beleza? Ou, Escravizar-se a beleza e repelir a sabedoria? Eu escolheria ambas, e o Homem inteligente, sensato e esclarecido escolheria para viver neste seu santuário, sobrevivente já de muitos temporais e invernias, tanto a ti minha velha amiga e sensata coruja, como a ti meu jovem e estouvado rouxinol. Em suma, ele escolheria a sabedoria e a beleza, a ciência e a poesia, a luz e a música. Porque a sabedoria e a beleza são inseparáveis, e ele sabe que a sabedoria é formosa e que toda beleza possui o brilho da verdade. Coruja e rouxinol vocês completam-se, acabem com essa inútil briga e com essa estéril discussão, pois ambos simbolizam a essência para uma vida humana em total harmonia. Não queiram com a vossa teimosia, fazer com que esta mente venha a engrossar o caudal do pensamento que se tem caracterizado pela total oposição entre a doutrina e a realidade, a teoria e a prática. Eu tenho assistido na minha já não muito curta existência a oposições que atingem o desvario. Pois enquanto umas só valorizam a experiência, outras perdem-se em elucubrações cerebrinas. Perpetuando essa discussão, vocês só irão fazer com que esta mente venha a engrossar as turbas dos pragmáticos, dos adoradores do concreto que tendem ao puro materialismo. Meus vizinhos desaveços, como seria frio e estéril este campanário sem a coruja e sem o rouxinol! Como seria vazio e superficial este campanário sem o rouxinol e sem a coruja! De que vale a teoria sem a realidade? De que vale a poesia sem a verdade? O ideal é unir-vos pelo que vocês os dois representam, pois o real é a luz intelectual na música da matéria. O real é a harmonia entre o teórico e o prático, a doutrina e a vida, o abstracto e o concreto, a coruja e o rouxinol. Sendo o homem composto de elementos diferentes mas harmónicos entre si, agrada-lhe que viva no seu cérebro tanto o que lhe significa a coruja como o que lhe significa o rouxinol. Por isso sejam aquilo que representais, o homem ama a concórdia dos elementos aparentemente opostos. Nem o puramente abstracto, nem o puramente material satisfazem plenamente o homem. A razão não encontra nas criações poéticas toda a verdade de que necessita, pois a luz da verdade, na poesia, é por demais difusa. A sabedoria do abstracto é o vitral que lhe torna possível ver através da luz ofuscante de Deus, em todas as suas cores, brilhos e virtudes. A luz filtrada por este vitral de encantamento, encarna-se no Verbo de Deus, na Verdade Divina acessível à visão humana.»

«De ti Mocho, já aguardava e esperava as sábias e doutas palavras que acabaste de proferir. Sempre agradáveis ao nosso ouvido. Por mim, reconheço e aceito a parceria da vivência neste espaço do jovial e alegre Rouxinol.»

«Coruja! As científicas palavras emanadas pelo Mocho, são o expoente máximo da inteligência e da musicalidade que o seu sentido traduz. O Mocho ajudou-me a ver numa outra perspectiva, que humildemente te confesso, ainda não me tinha apercebido da sua existência. Reconheço e curvo-me à tua sabedoria e ao teu grande valor. Coruja!»

Finalmente, com a inteligência do Mocho a concórdia, a sintonia e a harmonia passou a reinar naquele campanário do saber e do conhecimento, não havendo até aos nossos dias memória de qualquer discordância dos seus inquilinos em tempos desaveços.

O Relógio

Nove grossas gotas sonoras de um velho relógio de parede, algures no prédio onde habito, ressoaram e fizeram tremer as paredes do meu quarto. Nunca gostei deste som metálico e lúgubre.

Recordo-me, quando ainda em tenra idade, na casa da minha avó materna, existir um destes velhos relógios de parede, muito bonito por sinal, nas suas artísticas e elegantes talhas em mogno, num profundo contraste com todo o rústico mobiliário existente na casa de chão térreo, pobre e de interior sombrio. Os rústicos e parcos móveis desta casa de ternura e de saudade, estavam sempre mergulhados numa perpétua, permanente e teimosa obscuridade tornando-os sempre invisíveis.

Na frente da casa, apenas uma estreita porta de acesso a um comprido e interminável corredor, que comunicava com os quartos perdidos sempre em penumbras e em trevas, paradeiro de medos e assombrações, berço de histórias de arrepiar e de pasmar, que ainda hoje, torna a minha coragem rala e envergonhada, só de recordar as histórias que me embalaram nestas sombrias catacumbas.

Uma estreita janela, pertencente à sala nobre da casa, completava o seu frontispício de paredes sempre limpas e caiadas. Nesta sala, à janela, muito tempo da minha meninice ali passei, sentado num mocho a deliciar-me com os banhos de luz, que trespassavam os vitrais axadrezados da pequena e humilde janela, orlada com cortinas de renda, de uma brancura pura e imaculada, feitas com as mãos da minha avó.

Esse era o meu lugar preferido para deslumbrar com curiosidade a vida que no exterior pachorrentamente corria e desaguava num largo enorme, que na maior parte do ano estava sempre poeirento. Como uma sentinela atenta, vigiava constantemente o movimento que se fazia nesse largo, que dava pelo nome de Rossio, onde uma vez por ano e no primeiro Domingo de Setembro, se galaneava, para receber o grande acontecimento que era a feira anual e nos restantes dias do ano, o assento tanto de arraiais ciganos como de tendeiros, o que o transformava numa testemunha de costumes e de hábitos, para mim, misteriosos e desconhecidos.

Ao fundo do rossio, adivinhava-se através da penumbra das calmarias, as grandes, imponentes e majestosas torres brancas da igreja matriz, sobranceira à estrada que dá para o cemitério. A pouca distância deste templo da cristandade, as silhuetas dos topos dos ciprestes de um azul cinzento, deixava-nos adivinhar e antever que naquele local se recolhia a saudade e o descanso eterno de muitos que deste mundo já não fazem parte.

Nas minhas costas de menino, o dono e o senhor do tempo, cuja presença tiranicamente se fazia lembrar, através de um tic-tac ruidoso, compassado e ressonante, o qual, era interrompido de tempos a tempos, por gotas de som ensurdecedor e estridente. Estas badaladas vigorosas e estremecidas, quase sempre, no meu quarto de sentinela, eram acompanhadas pela minha observação, ao longe, de um cortejo de escuros vultos, séquito de alguém, que nos deixou e partiu para a sua derradeira e última morada.

Vibração mecânica, carcoma da vida, presságio fugaz da nossa existência, que teima em permanecer no meu inconsciente e que ainda hoje me atormenta, e de noite banhado em suores húmidos e frios me desperta. Este simbolismo das sonoras badaladas do relógio de parede, tem justificação e razão de ser no meu “Eu”. Pois, tanto os sons como o nosso coração têm mistérios, que entre si se relacionam muito bem e perfeitamente se ajustam. Talvez seja essa a razão, porque alguns sons agradam muito mais a esta, ou àquela pessoa. A melodia é uma escrita com sons, e esta faz com que os nossos sentimentos vibrem e despertem com a intensidade e a força da nossa sensibilidade, de harmonia com o seu enredo e o drama que elas nos contam. Esta é a razão, porque existem sons que agradam mais a uma determinada pessoa, do que a outra, uma vez que eles a umas podem encantar e derivar sonhos de embalar, enquanto que a outras, podem entediar e enfastiar, tanto pelo desconhecimento da linguagem interpretativa da sua leitura, como até mesmo pela não compreensão da sua história. Outros sons há, que podem despertar recordações, medos e fantasmas do passado, como é o caso das badaladas sonoras e rítmicas de um relógio de parede.

Cada um de nós, segundo as condições especiais do nosso estado mental e psíquico, fica mais ou menos em consonância com a linguagem de determinada harmonia e composição dos sons. Estes contam-nos sentimentos e por isso existe a possibilidade de serem afinados tanto na harmonia, como na sensibilidade que habita o nosso coração. Os sons provocados pelos relógios de parede são sons confidentes e denunciadores dos sentimentos que habitam no meu coração.

Em suma a predilecção de uma determinada melodia em detrimento de outra, permite-nos descobrir as pessoas que se acham irmanadas pelos sentimentos. Há mistérios entre a harmonia que regula o equilíbrio das notas musicais e aquela que preside ao equilíbrio do nosso "eu", que são desvendadas e descodificadas pela escolha das melodias e dos sonoros ruídos, que cada um de nós gostamos mais de ouvir e de apreciar.